REFORMA PSIQUIÁTRICA

Por Daniela Arbex

Minas produziu a maior tragédia da loucura no país, através do Hospital Colônia, mas acolheu os primeiros movimentos pela reforma psiquiátrica. Assim como na Inconfidência Mineira, importante movimento social da história do Brasil, ocorrido em 1789, a luta pela mudança de paradigma na saúde mental, deflagrada oficialmente em 1979, contou com a ajuda de insurgentes. Alguns dos psiquiatras que se rebelaram contra a desumanidade de Barbacena, localizados agora pela Tribuna, foram, na época, exonerados do serviço público, responderam a sindicância no seu órgão de classe, sendo ainda hostilizados por colegas que se calaram, por décadas, diante do genocídio ocorrido na Colônia. Mas aí já era tarde. Os porões da loucura ganharam voz, com a ajuda das denúncias do psiquiatra italiano Franco Basaglia, do cineasta Helvécio Ratton e do jornalista Hiram Firmino, ambos brasileiros, cujos ecos alcançaram o mundo. O extermínio em massa de enjeitados chocou a opinião pública da Europa e dos Estados Unidos, desencadeando um senso de urgência em relação à construção de um modelo de atendimento humanizado.

As primeiras manifestações públicas feitas por médicos contra o “campo de concentração” da Colônia ocorreram na década de 70. De maneira isolada, alguns psiquiatras romperam a cultura do silêncio em relação ao massacre de Barbacena, sendo, por isso, perseguidos. O psiquiatra e escritor Ronaldo Simões Coelho, atualmente com 80 anos, chegou a ser expulso do serviço público em 1979, após revelar as mazelas da Colônia, em artigo escrito para o III Congresso Mineiro de Psiquiatria que aconteceria em novembro daquele ano, em Belo Horizonte (atualmente na sua XIII edição). Ele trabalhava para a Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais, que passou a gerir a totalidade dos hospitais públicos do Estado, em 1977, período em que as antigas fundações de assistência de saúde do estado se fundiram. Após o ato de ousadia, Simões perdeu o emprego. “O superintendente, na época, sentiu-se ofendido e me expulsou sem saber se eu precisava daquele emprego para sustentar minha família”, relembra ele. No artigo, Simões citava a “Divina Comédia” de Dante e usava a metáfora do inferno para se referir ao hospital. Hoje ele fala sobre a vergonha diante de um hospício que tratava pacientes como “animais” e da vergonha de se intitular médico psiquiatra num contexto como aquele. “Tive não só vergonha social, mas uma certa revolta diante de todos aqueles acontecimentos. O doido de Barbacena não era tratado como gente. Infelizmente a loucura continua sendo algo desprezado.”

Membro da Associação de Psiquiatria Brasileira, Francisco Paes Barreto, 68 anos, também denunciou, em 1979, as condições dos hospitais psiquiátricos em Minas. A publicação de suas críticas na imprensa mineira resultaram na abertura de sindicância pelo Conselho Regional de Medicina, sob acusação de ele ter infringido a ética médica. Apesar das retaliações, Barreto sabia que era necessário fazer alguma coisa. “A tolerância mórbida dos psiquiatras se estendeu ao meio médico, em cujas faculdades os cursos de anatomia eram abastecidos por generosa quota de cadáveres provenientes de Barbacena. Os hospitais de crônicos da rede pública eram “instituições finais”, numa alusão à “solução final” do nazismo. As denúncias sobre a realidade brutal de nossos hospitais psiquiátricos, enquanto permaneceram restritas aos meios profissionais, mostraram-se inteiramente inócuas, pois havia uma acomodação, na qual todo aquele horror tornara-se banal. Na imprensa, as denúncias repercutiram”, relembra o psiquiatra. Quando a realidade da colônia veio à tona, as críticas de Barreto revelaram-se brandas diante daquele holocausto brasileiro. Pouco tempo depois, a sindicância aberta contra ele foi arquivada por unanimidade.

 

Visibilidade mundial para ‘campo de concentração’

Em julho daquele mesmo ano, o psiquiatra italiano Franco Basaglia, com então 55 anos, desembarcou no Brasil para realizar uma série de visitas aos hospícios do país. Ele foi responsável pela mais importante reforma do sistema de saúde mental da Itália, e o serviço hospitalar dirigido por ele, na cidade de Trieste, foi considerado, em 1973, referência mundial da reformulação de assistência à saúde mental pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

Ao tomar conhecimento da vinda de Basaglia ao país, o psiquiatra mineiro Antônio Soares Simone, hoje com 61 anos, convidou o colega italiano para visitar Minas, a fim de apresentar a ele as instituições psiquiátricas públicas: Instituto Raul Soares, Hospital Galba Veloso, ambos na capital, e o Hospital Colônia em Barbacena. Na época, Simone era professor da residência de psiquiatria do Instituto Raul Soares.”O Hospital Colônia sempre foi um extremo incômodo para mim. Ainda era acadêmico de medicina quando ia lá examinar pacientes, porque não havia psiquiatra em número suficiente, em função do contingente absurdo de gente lá. Em Barbacena, os pacientes eram exterminados, e ninguém procurava saber onde eram fabricados os cadáveres que alimentavam as salas de anatomia das faculdades. Aquela situação deveria ser angustiante para todos os médicos, mas a maioria tinha defesas e negava a situação para si. Isso fez com que se mantivessem em silêncio durante décadas”, critica Simone.

Foi o próprio Simone quem levou Basaglia de carro a Barbacena, naquela última semana de julho de 1979. O psiquiatra mineiro conta que, após conhecer o Hospital Colônia, o colega italiano passou a viagem de volta a Belo Horizonte, em silêncio. “Ele estava estarrecido. Quando chegamos a Belo Horizonte, fomos direto para a Associação Médica Mineira, onde ele estava dando um curso de psiquiatria social. Ao final da conferência, me pediu para acionar a imprensa e começou a falar sobre o que viu, comparando Barbacena a um campo de concentração nazista. Basaglia me disse que em lugar nenhum do mundo havia presenciado uma tragédia como aquela. A entrevista caiu como uma bomba fora do país. O “New York Times” foi um dos jornais que se interessou pela história. Basaglia deu visibilidade mundial a tragédia da loucura mineira”, comenta.

Simone foi processado pelos hospitais psiquiátricos, e a cassação de seu diploma foi cogitada pelo Conselho Regional de Medicina (CRM). “Sinto-me realizado como médico por não ter partido para a negação daquela tragédia. O fato de aquelas denúncias terem colocado fim à fábrica de cadáveres e ao grande sofrimento humano vividos em Barbacena me satisfaz. Apesar de toda perseguição que sofri, cumpri a minha função médica”, comenta.

O psiquiatra Paulo Henrique Resende Alves, 64 anos, revela que Basaglia foi o grande inspirador do movimento antimanicomial do país. Após sua passagem pelo Brasil, a Associação Mineira de Saúde Mental, fundada por Ronaldo Simões Coelho e aberta para quem se interessasse pelo tema, ganhou força, abrindo as portas para os militantes “basaglianos”. “A partir daquele momento, tornei-me um militante dessa luta e, durante os anos em que fui professor de Psiquiatria Social da UFMG, transmiti esses conceitos para os meus alunos”, acrescenta Paulo Henrique, eleito presidente da Associação Mineira de Psiquiatria em 1981.

Em 1980, a Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig), à qual pertencem os hospitais psiquiátricos públicos mineiros, aprovou o Projeto de Reestruturação da Assistência Psiquiátrica, que acolhia as teses do III Congresso Mineiro de Psiquiatria. Os porões da loucura, finalmente, começaram a ser abertos.

Dissecando os porões da loucura

Se Franco Basaglia foi decisivo para a implantação do movimento da reforma psiquiátrica mineira, o jornalista Hiram Firmino, 61 anos, foi o grande porta voz dos pacientes de Barbacena. Ele é o autor da série de reportagens “Os porões da loucura”, publicada, em 1979, no jornal “Estado de Minas”, onde trabalhou por mais de 20 anos. Um dos méritos de Hiram, com 30 anos à época, foi conseguir entrar no subterrâneo da loucura. Dezoito anos após as denúncias da revista “O Cruzeiro”, feitas, em 1961, pelo fotógrafo Luiz Alfredo, nenhum outro jornalista havia conseguido transpor os muros da Colônia. Hiram não só conseguiu entrar, mas despertar na sociedade a necessidade de mobilização.

O interesse pelo tema sempre acompanhou Hiram. O jornalista abrigou em sua casa, por dois anos, com o apoio da esposa, uma mulher conhecida como “a louca de Inhabim”. A história da professora primária de 37 anos que buscava cura para a sua esquizofrenia tocou Hiram, que acabou fazendo com ela uma via crucis, a procura de tratamento. “No final, ela me disse que estava igual a uma rosa. Em cada lugar que ia, tiravam uma pétala. Taninha acabou se matando. Quando ela morreu, contei sua história no “Estado de Minas” e muitas pessoas vieram me dizer que eu não tinha visto nada, pois Barbacena era muito pior. Aí fiquei com esse negócio na cabeça.”

A autorização para dissecar Barbacena e os hospitais psiquiátricos mineiros veio durante uma entrevista feita pelo jornalista com o então secretário de saúde do estado, Levindo Coelho, em 1979. “Meu editor pediu para fazer uma reportagem sobre Doença de Chagas e me mandou entrevistar o presidente da Associação Médica de Minas Gerais. Distraído, eu fui para a Secretaria de Estado da Saúde, cujo secretário era o Levindo Coelho. Como já estava lá, resolvi entrevistá-lo e o achei muito progressista. Havia uma efervescência sobre a situação manicomial, com a vinda do Franco Basaglia ao Brasil. Por isso, perguntei a ele o que pensava sobre isso e como ele respondeu com indignação ao atual quadro dos hospitais, pedi para visitar as instituições. Ele franqueou a minha entrada”, lembra Hiram.

O jornalista conseguiu fazer uma ampla radiografia do setor e não saiu incólume daquela experiência. “Como todo mundo, eu era cheio de problema existencial. Quando eu entrei lá, fiquei com vergonha das minhas depressões. Ao ver aqueles muros de não sei quantos metros de altura, percebi que as pessoas só sairiam mortas dali. Diante daquela tragédia, meus problemas se reduziram a pó. Na hora, eu criei uma armadura. Mas quando baixei a guarda, chorei muito. Aquilo é que era sofrimento”, conta.

As matérias assinadas por Hiram foram publicadas durante meses. “Muitas pessoas que entrevistei tinham apenas perdido a carteira com os documentos, outras foram pegas usando maconha e levadas para lá. O que me chocou foi a gratuidade, a falta de voz, a impotência diante do sistema. O fato de as pessoas terem sido presas sem terem cometido crime nenhum. Apesar disso, eu não julguei, apenas escrevi. Com as reportagens houve uma autorreflexão, resultando na reforma psiquiátrica. Foi alguém de fora que pegou o espelho e mostrou: olha o que vocês estão fazendo. Só a informação gera consciência”, diz Hiram, que atualmente é editor da “Revista Ecológica”.


Embrião das residências terapêuticas

O psiquiatra Jairo Toledo, que ocupa novamente a direção do Centro Hospitalar Pisiquiátrico de Barbacena (CHPB), ajudou a transformar a realidade da colônia. “Em 1980, vim para o hospital e passamos a adotar critérios para internação, limitando a região de atendimento. Passamos a ter um pavilhão específico para internar os pacientes agudos. Começamos a trabalhar com a ótica do ambulatório. Não tínhamos equipe multidisciplinar, criamos duas equipes. Tiramos as celas, criamos o pátio misto e conseguimos construir cinco casas que foram o embrião das residências terapêuticas no país. Num dado momento, representantes do Governo vieram aqui, e percebi que eles estavam cogitando não colocar doente mental naquelas casas. Então, reuni meu pessoal e, em uma semana, fizemos a ‘invasão’. Muitos desses pacientes saíram do hospital, mais tarde, para as residências terapêuticas.”

Atualmente Barbacena é a cidade com maior número de residências terapêuticas do país, 28, em relação ao número de habitantes. Nelas vivem 160 pacientes, a maioria oriunda do antigo Hospital Colônia, além de internos da Casa de Saúde Xavier e do Sanatório Barbacena. “É uma herança que ficou para a gente. Nós temos o compromisso de cuidar dessa população dentro do ideal de assistência aberta, que substitui a lógica manicomial, em função da história de Barbacena. Nas residências, eles tiveram que reaprender a se vestir, a se cuidar e se apropriar das coisas da cidade, tornando-se visíveis para a sociedade. O que temos observado é que, mesmo depois de tudo que passaram, eles não perderam a esperança”, afirma a coordenadora das residências terapêuticas, Leandra Mara Melo Vidal.

Fonte: Tribuna de Minas

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