DIA DO TRABALHO E O FIM DE ALGUMAS PROFISSÕES
Dia de que tipo de trabalho?
Após o Primeiro de Março, pesquisador da “Revista de História” fala sobre o fim de alguns tipos de carreiras, como chapeleiros, fotógrafos lambe-lambe e fiandeiras
Mais um Primeiro de Maio se passa. Mais um dia em que se comemora a luta e a experiência dos trabalhadores. Pensado em gênese pela Associação Internacional do Trabalho ? igualmente conhecida como a Primeira Internacional, criada em 1864 ?, o Primeiro de Maio toma a cena a partir de 1889 como um dia dedicado à luta internacional dos trabalhadores, em alusão aos protestos e confrontos de Chicago em 1886. A data permanece firme como símbolo importante de trajetórias e experiências tão ricas em nossa história; já a classe trabalhadora se transformou bastante ao longo desses 122 anos.
De fato, entre os anos 1970 e 1980, a desconfiança quanto ao futuro do proletariado como sujeito importante para o processo de transformação social esteve em xeque. No Brasil não foi muito diferente. As formas de produção mudavam, assim como as fábricas e suas demandas de vagas. Juntamente com a chamada reestruturação produtiva e a flexibilização do trabalho, trabalhadores de diferentes setores perderam seus empregos e outros apenas viram-no se extinguir com a passagem do tempo e a aceleração da tecnologia.
Os efeitos em diferentes campos da atuação social, econômica e política humana foram tão diversos quanto os acontecimentos ocorridos no contexto global nos últimos 50 anos. Richard Sennett, professor da London School of Economics, aponta em seu livro “A corrosão do caráter” que a natureza flexível do capitalismo infligiu um duro golpe ao universo do trabalho. A rotina, a burocracia e a estrutura se mostravam mais perenes até pouco depois da metade do século XX. “Carreira”, para ele, era justamente a profissão como o significado de perspectiva econômica e uma identidade mais clara, mais concreta, para o indivíduo, quando este se inseria socialmente e economicamente em uma estrutura de trabalho.
Esta perspectiva, no entanto, veio se tornando cada vez mais rarefeita frente ao novo mundo das últimas décadas. Onde o choque de gerações entre velhos e novos trabalhadores apenas tornou maior entre eles o “abismo” de suas diferenças. Afinal, quantos ofícios se apagaram, como lâmpadas que se queimam por não resistirem às oscilações da corrente que as alimenta?
Datilógrafos, operadores de mimeógrafos, motorneiros e cobradores de bonde, telegrafistas, amoladores de facas e funileiros (que consertavam panelas de alumínio), chapeleiros, sapateiros, alfaiates, telefonistas, fiandeiras e tecelões, lanterninhas de cinema, entre tantas outras. Muitas destas profissões encontraram seu fim ao passo que a sociedade se abriu cada vez mais para o mercado de consumo e se modernizou. Para aqueles que foram “a pique” junto com seus ofícios, a constatação de um “desencaixe” em relação ao cenário do trabalho e ao seu papel social continuam a fazer parte do seu dia a dia.
Embora muitas profissões tenham acabado, ou estejam em vias de acabar, a lembrança de muitos trabalhadores é surpreendentemente viva. O lugar de trabalho para muitos foi o espaço onde mais eles estiveram atuantes por anos. Em grande parte, suas redes sociais foram criadas no percurso de suas carreiras. Hoje, não apenas postos de trabalho, ofícios, chegaram ao fim, como chegaram também ao término muito do convívio social de inúmeros trabalhadores.
As palavras de uma velha senhora, fiandeira de fábricas de tecidos localizadas no bairro do Caju no Rio de Janeiro, parecem mostrar adequadamente o quanto sua saudade era a medida da solidão que vivia até então:
“Puxa vida, saudades do trabalho”, falou Dona Esmeralda, operária da antiga Cia. América Fabril, em uma entrevista há cerca de seis anos: “eu tive muitos amigos até hoje da América Fabril, sinto saudades, sinto amor pelo meu trabalho; eu já te disse que se ela [a fábrica] tivesse rodando, (…) eu, com essa idade, estaria lá, nem que fosse pra varrer (…) nem que fosse no banheiro, pra limpar o banheiro, eu ficava, eu ficava.”
Algumas profissões, como afinador de pianos ou alfaiate, estão sempre sob ameaça constante ao passo que já não são tão indispensáveis. Enquanto isso, outras se tornaram parte da história. O fotógrafo lambe-lambe é um desses. Na era da tecnologia digital um saber quase artesanal na confecção de lembranças em papel fotográfico deixou de ter seu lugar. No Rio e em Minas Gerais cogitou-se torná-lo patrimônio cultural com o objetivo de evitar que tal prática de valor histórico se perca no tempo. Coisa que se tornou realidade em terras cariocas a partir de 2005, com o Decreto Municipal n°. 25.678.
Já os chapeleiros e os relojoeiros são cada vez mais raros. Afirmar que o relógio e o chapéu não são mais usados é um erro. Entretanto, a relação que o homem manteve com tais elementos se tornou muito mais efêmera. Relógios, chapéus e sapatos; panelas, talheres e tantos outros bens; podem ser comprados e substituídos por novos modelos. Mais modernos. Comprados e não mais consertados ou preservados. Assim o mercado decretou o fim de muitas profissões.
“Hoje em dia o chapéu não dá mais, não adianta insistir”, contou em depoimento ao Museu da Pessoa, dentro do setor de Memórias do trabalho, o chapeleiro mineiro Marciliano Gomes Monroe [http://www.museudapessoa.net/mtrab/profissoes_index.htm]. “Dá para ganhar um pouquinho, para passar o tempo, mas o negócio está fracassado. As pessoas não usam mais chapéu porque é muito mais prático não usar chapéu. Ao entrar em qualquer pequeno escritório, quem está de chapéu tem que pôr no porta-cabide. Cadê o porta-cabide? Não tem mais porta-chapéu. Então tem que pôr debaixo do braço e isso vai desestimulando o interesse de usar chapéu. Na igreja não pode usar chapéu, no Fórum não pode usar chapéu.”
A mudança é sempre esperada ao passo que continuamos a existir no tempo e no espaço. No entanto, talvez nos surpreendamos com o fato de que alguns dos desafios enfrentados por muitos trabalhadores continuam bem próximos àqueles do final do século XIX. Os infoproletários de hoje continuam a trabalhar ao toque do relógio, agora digital. O Primeiro de Maio permanece, em muitos dos seus sentidos originais, presente em uma memória coletiva que não tem hora para acabar de trabalhar.
Ricardo M. Pimenta
Doutor em Memória Social. Pesquisador da Revista de História da Biblioteca Nacional e professor do curso de História das universidades Candido Mendes (Ucam) e Uniabeu.
Postado por Ernesto Albuquerque
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